Fake-Ollie 2004

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Sabe quando alguém chega e diz: ah, agora você vai ouvir umas verdades? Isso aqui é exatamente o contrário.

Textos às terças e/ou sextas.

Autor

Olinto Neto, ou Ollie para os íntimos, vive e escreve em Fortaleza, CE.

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sexta-feira, setembro 03, 2004

A razão de Carmela

Teria sido uma manhã de sábado como as outras, apesar da festa na noite anterior, pois ela já estivera em festas assim. Apesar do prêmio que recebeu, e do sucesso de um livro recém-lançado com seus trabalhos, afinal, já recebera prêmios antes, e todos os seus livros haviam feito sucesso.

O dia começou, como ocorre semanalmente, num encontro com seus colegas fotógrafos. Reuniam-se num bar no centro da cidade, em frente ao prédio velho da redação. Tudo era bastante simbólico. O jornal há muito se havia mudado para um bairro mais chique, e a velha sede, hoje condenada, era tão somente casa para famílias de desabrigados e mendigos de toda sorte. Muitos dos que se encontravam aos sábados nem sequer trabalhavam mais no jornal, se é que ainda trabalhavam em lugar algum. Haviam duas ou três gerações diferentes ali, ela pertencia à mais nova delas, e nunca havia trabalhado no prédio em frente. Fora levada aos encontros inicialmente por um ex-colega, fotógrafo veterano, que parecia muito interessado em lhe ensinar a rotina do ofício, mas na verdade tinha outras intenções.

Seu nome era Carmela, e seu rosto jovem e belo trazia no olhar o primeiro sinal da idade, que precede em muitos anos as rugas da pele, aquele jeito triste de quem se dá conta que não há mais mundos a conquistar.

No boteco, ouviria um elogio aqui, outro ali, pelo prêmio, pelo livro. Algum iniciante, com ares de respeito, iria perguntar sobre as lentes, filtros e técnicas de uma ou outra foto em especial, sempre muito interessado, e cheio de outras intenções. Outros brincariam, e Carmela se sentiria bem por estar entre pessoas que a conheciam desde antes da fama e do prestígio profissional, e a tratavam como uma colega qualquer. Era sua sessão semanal de pés no chão. E tudo teria sido bastante igual aos outros sábados, não tivesse ela sem querer derrubado um copo de cerveja naquele chão.

Pediu desculpas, afastou alguns pedaços de vidro com um dos pés, e como não havia garçon para atendê-la no arremedo de bar, dirigiu-se ao balcão para buscar um novo copo. E então, recostada lá, viu-se olhando o lugar pela primeira vez daquele ângulo. Nunca havia estado ali pelo lado de dentro, e então percebeu de relance um quadro na parede interna do bar. Era uma pintura amadora, embora figurativamente precisa, de um palhaço. Reconheceu que se tratava de um desses quadros velhos que se vendem em feiras e mercados de pulgas, para pendurar em cômodos modestos, ou mesmo em paredes de boteco. Achou aquilo de um mal gosto sem tamanho.

Então percebeu algo. Não sabia explicar o quê. Mas havia algo estranho, imperceptível, quase, na expressão do palhaço. Aguçou os olhos e passou então a observar com apuro, como fazia naturalmente, as luzes e sombras no rosto da figura, e por suas projeções, calculou de onde viriam e com qual intensidade, vendo-as continuarem fora da pintura. Depois criou uma moldura imaginária, flutuando no ar. Passou a enxergar apenas dentro daquela área, ignorando todo o universo ao redor, movendo-a para cima, para baixo e para os lados com costumeira desenvoltura, destacando diferentes partes da figura. Ainda assim, não conseguiu compreender exatamente o que havia capturado sua atenção.

Aquela noite, não conseguiu dormir. Fechava os olhos, e era assombrada pelo rosto do palhaço, seu porte, seus pequenos detalhes. Logo cedo, voltou ao boteco e ofereceu algum dinheiro pelo quadro. Notou que o dono não pareceu insatisfeito em livrar-se dele. Nas semanas que seguiram-se, estudou-o sob diferentes condições de luz, ou olhando-o através de filtros, artimanhas e câmaras escuras. Até mesmo em diferentes horas do dia, e finalmente, com diferentes estados de humor. Achava incrível como algo tão mundano e esteticamente obtuso parecia continuar a desafiá-la. Mas não haveria de ser devorada pela dúvida. Decidiu decifrar o palhaço, controlá-lo, criar por meio dele.

Daí em diante, ninguém entendeu ao certo o que aconteceu. No ano seguinte, Carmela expôs novamente. Todas as fotos eram instantâneos da vida comum, sua especialidade. Em algum lugar de cada foto, porém, uma pessoa, ou várias, eram palhaços, no meio da gente comum. Um operário, entre outros, numa construção. Alguém numa parada de ônibus. Executivos em uma mesa, discutindo negócios. Crianças numa favela. Muitas vezes via-se apenas a bola no nariz, outras vezes maquiagem completa, cabelos e indumentária.

Os colegas espantaram-se. O público fez seu papel e não entendeu nada, como de costume. A crítica dividiu-se. Um crítico solitário, porém, bradou tratar-se de pura genialidade, comentando como era impressionante a expressividade dos narizes vermelhos, mesmo nas fotos em preto e branco, e resenhou a exposição inteira, tudo com muito interesse, mas... talvez com outras intenções.

Na verdade, o virtuosismo técnico, a força dos enquadramentos, a precisão na captura e composição de movimentos, a pura beleza estética daquilo tudo era apavorante. Mas os palhaços davam às cenas um ar de interferência, estranheza, controle. Havia algo incômodo, mas que simplesmente não se conseguia identificar.

Depois vieram outras exposições, com celebridades, atores da televisão, jogadores de futebol, músicos e políticos, retratados como palhaços. Então aquilo tudo começou a cansar. As pessoas já não tinham mais interesse em ver de quantas formas diferentes pode-se retratar palhaços, ou inserí-los nos mais diversos cenários e situações.

E haviam os boatos. Que Carmela passou a colecionar centenas de quadros de palhaços, que comprava-os em feiras, por anúncios nos jornais, que ia a outros países só para achar modelos diferentes. Que ela mesma usava um nariz de palhaço quando batia suas fotos. O estilo, que antes era curioso, passou a parecer doentio. O livro que foi publicado em seguida vendeu muito pouco, e até mesmo aquele crítico já havia esquecido dela, embarcando noutra aventura cultural mais recente.

Se a fama e o sucesso estavam deixando-a, nos encontros de sábado, porém, parecia animada e alegre, e nas conversas entre colegas, todos ainda se tratavam como iguais. Ninguém, nem mesmo os novatos, jamais lhe perguntaram: "vem cá, por que essa fixação com os palhaços?". Talvez por respeito, talvez tivessem no fundo um pouco de medo da resposta. Se descontarmos o fato de que agora ela nem sempre podia contribuir na hora de pagar a conta, tudo continuava como sempre. E a cada semana Carmela parecia bela e jovem como há muito tempo não se via.

(ollie)

Notas

Henri Cartier-Bresson, (1908-2004). Um dos maiores fotógrafos de todos os tempos. Mestre da fotografia do instante, bem como dos retratos de personalidades.

É dito que aos 33 anos, enquanto olhava seus domínios, Alexandre o Grande chorou, pois já não haviam mais mundos a conquistar.

O Museu Warhol exibiu, de 24 de agosto a 26 de outubro de 2003, uma coleção de quadros de palhaços, de propriedade da atriz Diane Keaton. Os quadros de palhaços são em geral considerados peças decorativas com pouco ou nenhum valor artístico.

Matryoshkas são bonecas russas típicas, feitas de madeira. Ao abrir-se uma boneca, há outra dentro. E dentro dessa, mais uma. Assim por diante...

"I'm falling flat and my arms are empty. Clear the way, better get it out of this room. A falling woman in dancing costume..." (PJ Harvey / Dress)

ollie - # -

 

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