Fake-Ollie 2004

Blog

Sabe quando alguém chega e diz: ah, agora você vai ouvir umas verdades? Isso aqui é exatamente o contrário.

Textos às terças e/ou sextas.

Autor

Olinto Neto, ou Ollie para os íntimos, vive e escreve em Fortaleza, CE.

Arquivos

junho 2004
agosto 2004
setembro 2004

E mais...

sexta-feira, junho 25, 2004

"Mas eu sempre volto"

Agora minha morena foi embora pra Minas e me deixou aqui, só, na mão, com fome e desastrado, perdido nessa casa dela cheia de trique-traques e bibelôs. Aqui tudo é frágil demais. As coleções, as mesinhas, os vasos de barro, os tampos de vidro, os pratos coloridos, e este que vos fala, inclusive.

Pois de uns tempos pra cá, a morena nem me avisa mais quando vai viajar. E também não diz pra onde vai. Parece que tem medo que eu a siga. Quando muito, acordo e tem um bilhetinho do lado da cama: "benhê, fui resolver umas coisas. Não fique triste que já já estou de volta. Por favor não se desespere, sei que você não gosta disso, mas lembre-se que eu sempre volto."

Se fosse caso de traição, até se justificaria o segredo. Mas não pode ser. Na verdade, tô mesmo desconfiado que ela está metida com algo ilegal, ou imoral. Mais de uma vez, meti a mão no cesto do banheiro, para buscar canhoto de passagem, boleto de cartão de crédito, xerox de documento, mapa rodoviário. Mas as coisas que ela compra, e os lugares que visita, não fazem qualquer sentido. Tem vezes que vai pro nordeste, pro pantanal, tem vezes que vai pro sul, tem vezes que é de navio. Mas dessa vez foi pro interior que eu vi.

Ô morena faceira, pra que judiar assim de mim? Deixa de bobagem e vem pra casa logo, que tô te esperando. Vamos chamar os amigos, fazer uma festa. É muito ruim aqui sem sua companhia. Ontem a cerveja acabou, e hoje quebrei um dos bichinhos de porcelana. Periga demorar demais, e eu botar a polícia pra te achar. Aí se eles te encontrarem, você não volta nunca mais.

(ollie)

"...but you go out in the night, till you got no place to go. Something you ain't doing right is haunting you at home." (The Walkmen / 138th Street)


ollie - # -

 

sexta-feira, junho 18, 2004

Estranho encantamento

Foi porque ele acordou, e já depois de muito tempo, percebeu que estava completamente afônico. Acordou só, como sempre, e não fosse um telefonema de anúncio, teria passado ainda mais tempo sem se incomodar com a falta de voz.

Não gostava dessas ligações, mas seria por isso que deixaria de ser cortês com a vendedora do outro lado. E algumas são muito insistentes. Mas hoje, tentou, tentou, e não conseguiu dizer nada. Ficou a ouvir a moça explicar que o crediário era o melhor do mercado, que lhe daria liberdade nas compras, e tinha até seguro.

Desligou, mesmo contrariado por cometer essa indelicadeza, e foi até o espelho. Se encarou e tentou gritar. Tentou sussurar. Falar normalmente. Cantar. Latir. Miar. Assobiar como um passarinho, mas isso nunca conseguiu fazer, nem quando estava são. Decidiu então que não seria à força que conseguiria achar sua voz. Mudou de estratégia.

Saiu para o jardim, cortou algumas flores do lilaseiro, ferveu no bule. Coou tudo e misturou com o que sobrou do mel colhido no sábado. Enquanto manuseava o extrato de lilás, foi atacado por uma melancolia profunda. Quando Elisa estava aqui, o jardim era seu lugar favorito. Nos últimos dias, quando já não podia mais caminhar, ele a carregava até uma cadeira de rede, sob a árvore, cercada pelos arbustos. Lá ficava lendo, cochilava, via as pessoas e os bichos passando lá longe.

De tempos em tempos, ele terminava uma parte do trabalho e ia lá ver como ela estava. Sempre a achava assim, perfeita, quieta, envolta numa aura roxa, as flores por toda parte, pelos cabelos, no chão, nas roupas. Aquele cheiro lilás que o hipnotizava era propriedade dela. E agora o estava sentindo novamente, e pela primeira vez se deu conta de ligar um sentimento ao outro.

Bebeu rápido e voraz, talvez para lembrar do gosto daquilo, para não sentir tanta falta. O xarope era grosso, meio doce mas também amargo, como uma lembrança boa. Derrubou o vidro no chão, mas não se importou. Retornou ao jardim entre lágrimas, e no caminho não percebeu que dizia, já em voz alta: meu amor, volta pra mim.

(ollie)

Notas

Lilás (Syringa vulgaris): Arbusto originário do Oriente Médio, cultivado por seus cachos de flores arroxeadas ou brancas, muito apreciado em todo o mundo por suas flores de delicado perfume.

Para febre: Ferver 60g de casca ou flores em 1 litro de água. Filtrar o líquido e consumir durante o dia. Para reumatismo: Coletar 200g de folhas de Lilás, esmagá-las e depois macerar por 15 dias em 100g de azeite. Filtrar apertando bem as flores através de uma peneira, empregar para esfregar as partes doloridas.

Lilac Wine, by Nina Simone.

Lilás, de Djavan.

Uma amiga disse que, segundo ensinamento Wicca, se você deseja despertar uma violenta paixão na pessoa amada, colha flores de lilás numa sexta feira de lua crescente e depois esfregue em seu corpo o sumo feito com as pétalas.

"Hold me now, don't start shaking. You keep me safe, don't ever think you're the only one, when times are tough in your new age." (The Polyphonic Spree / Section 12 (Hold Me Now))


ollie - # -

 

terça-feira, junho 15, 2004

Álbum de família, foto um

Tudo começou no interior da Bahia, nos anos 30. Maria Fernanda era moça bela e faceira, filha de um fazendeiro turrão, cujo nome não será lembrado. João Honório era rapaz forte, trabalhador, camponês típico, nascido e criado na fazenda do pai de Maria.

Todo romance de João e Maria é penoso, esse não foi diferente. Seu pai lhe avisou que não desse graças para os homens do campo, que ela havia de arrumar bom partido de nobre estirpe na capital. Até parece. Caiu nos encantos de João, e vice-versa. E lhe deu, muito mais que graças.

Quando soube da desfeita da filha, que anunciou d'uma só vez sua paixão e a vinda de uma criança, seu pai, aquele homem bruto, disse-lhe que "mulher sem honra não é filha minha".

Em seguida, mandou uns cabras irem dar cabo de João e, levando-a pelos cabelos, após uma surra, arrastou Maria até a margem do riacho, onde enterrou-a até o pescoço, para que ali ficasse até as águas subirem no fim do dia, levando-lhe embora a desonra e a vida.

Mas João, que além de apaixonado era sagaz e forte, desvencilhou-se dos capangas e correu para a fazenda, temendo o pior. Lá, não encontrando o fascínora maldito, foi ter com a mãe de Maria, que em prantos lhe confidenciou o ocorrido. Tocou seu cavalo até a beira do riacho e desenterrou Maria, ainda viva, com a água já batendo-lhe à boca, e com sua filha, dentro dela.

Não leva mais que um instante para que todo um destino seja decidido. E assim foi. Montaram no cavalo, e com a roupa do corpo, tomaram rumo incerto. Vieram tentar a sorte no interior do Ceará. Juraram esquecer aquilo tudo, e Maria ainda mais, apagou de si seu sobrenome e história, e assumiu o nome de seu marido, Alves.

Trabalhava na casa de dona Lavígnia, e João ia e vinha do interior para a capital cearense, onde agora trabalhava como pedreiro. Meses depois nasceu Francisca Maria. Muitos anos depois, João Honório morreu num acidente de obras, e Maria Fernanda, em seguida, de desgosto, talvez. Francisca Maria foi morar na capital, onde conheceu Manuelito. Este casal, anos depois, viria a ter, entre outros filhos, Maria Estela. E esta, há uns 30 anos atrás, teve a mim.

Eu e tantas outras pessoas, só existimos graças à honra e coragem de João Honório, que nos arrancou da lama do rio, nos deu nome e vida. Nesta que é a semana do meu aniversário, o parabéns é para você, João, onde quer que esteja.

(ollie)

"Well no one told me about her, the way she lied. Well no one told me about her, how many people cried..." (Malcolm McLaren / About Her)


ollie - # -

 

This page is powered by Blogger. Isn't yours?